CaioF - retrato de escritor
Gay Port, 12 de setembro de 2020
Caiño:
Por ironia, bem no dia do teu aniversário resolvi fazer uma faxina (momento Virgo, risos) aqui no Gabinete Astral. Ergui um brinde pra ti com o mate da manhã e parti pra lida. Estava começando a atacar um armário bagunçado quando vi a caixa com o girassol colado na tampa, aquela em que guardo recuerdos teus. De um envelope meio rasgado cai o mapa astrológico que desenhaste com caneta bic num papel azul clarinho de céu. Percorro os símbolos planetários, passo os dedos no desenho e sinto a tua presença no traçado, nos sulcos no papel, rios estreitos, veredas profundas, marcas na pele da emoção, nossas sinastrias & sincronicidades. Mas esse encontro precisou de trilha sonora. Entre fios emaranhados, pelos de gato e poeira, finalmente instalei o toca-discos que estava parado há meses. Comecei a ouvir aqueles LPs que escutávamos no teu apartamento em Sampa... os vinis espalhados no chão do escritório, ao lado da tua mesa de trabalho, as portas de vidro abertas para a sala ampla... A gente dançando “The Best” da banda Luni e rindo alto, nossos Caetanos, Cazuzas, Marinas, Billies e escorregando blues nos sofás brancos, embriagados e chorosos, ao som daquele disco riscado de Dulce Veiga que sempre repetia a mesma parte da música: “nada além de uma linda ilusão...” Saudades das canções, dos poemas, das estrelas e das conversas. E dos nossos silêncios, aquele à vontade bom e raro dos que se reconhecem e se acolhem. Nostálgica, eu? Provável. Já te disse em outra carta que a saudade é uma companhia.
Meu caro amigo, a coisa aqui tá preta, a desigualdade no planeta explodindo dolorosamente, a ganância destruindo a natureza. Sim, pior do que quando estavas por aqui. E tem essa pandemia, distopia real, novo banal. Estarias tristíssimo e muito indignado. A gente falava sobre essas coisas que estão acontecendo agora enquanto tropeçávamos nos astros, distraídos, achando que estávamos exagerando nas profecias. Ah, Caio, se não fossem os amigos e pessoas cheias de alma fazendo arte, insistindo no bom das gentes e tentando melhorar o mundo, tudo ficaria muito mais difícil.
Tem uma revista digital muito bacana aqui, a Parêntese, feita por um pessoal legal, a tua cara, adorarias participar. Nosso amigo Fischer, editor dela, chamou pra escrever um retrato teu. Não estava conseguindo fazer o texto, desatar os nós, até que resolvi falar contigo, assim, de perto, do nosso jeito. Me veio na cabeça “nossa primeira vez”, hehe. Lembra quando a gente se conheceu no saguão do hotel, durante a Jornada Literária de Passo Fundo em 85? Eu, toda nervosa e atrapalhada por chegar perto do meu ídolo literário e sem saber o que dizer, logo puxei um assunto astrológico. Que bom que funcionou, que não paramos mais de conversar e de trocar figurinhas da Terra e do céu. A gente se ajudou tanto, né? Tu continuas me ajudando. É assim desde que comecei a te ler quando tinha uns 15 anos, com O Ovo apunhalado. Quando te conheci pessoalmente eu tinha 25 e recém tinha lido o Triângulo das Águas, teu livro mais astrológico. O sonho de quando se admira muito alguém aconteceu... Abracadabras possíveis. Foi lindo. É.
Lindo também é ver que mesmo com tua partida para navegar outros planos há tanto tempo, 24 anos, bah, dois ciclos completos de Júpiter, tu continuas conversando com os jovens leitores. Caio, eles são apaixonados por ti! Tenho conhecido muitos deles principalmente depois que publiquei o livro sobre a Astrologia nos teus textos, o 360 Graus: Inventário Astrológico de Caio Fernando Abreu, com fotos maravilhosas tuas feitas pelas nossas queridas Sandra La Porta e Dulce Helfer. Os jovens se identificam com tua essência e com o teu jeito único e cheio de beleza na escrita. Falas as coisas que eles sentem, a dor e a delícia, os avessos, a coragem de pôr a alma a nu. Há poucos dias fiz uma live no Instagram, a convite de uma guria de 17 anos que realizou uma semana em tua homenagem nessa rede social. Ela convidou pessoas para falar, fez posts, leu livros teus ao vivo, muito massa. A conversa foi sobre a nossa amizade, a Astrologia e tudo e tal. E as pessoas conectadas fizeram perguntas. Querem saber de ti, como tu eras, o que gostavas de fazer, detalhes prosaicos, sabe, as coisas miúdas e belas. Sempre perguntam de amores & paixões, claro. Esses jovens leem tudo que escreveste, recitam trechos de memória, se sentem profundamente desvendados e libertos por tuas palavras. E, te lendo, também se sentem inspirados a escrever! Escrevem em blogs, redes sociais, revistas digitais, livros. Eventos acontecem a toda hora celebrando tua arte, lembrando tua existência e tua obra, é bonito demais! Tem filme, documentário, teatro, saraus, leituras, músicas, danças, debates. E cada vez mais estudos acadêmicos. Dizias que querias ser amado por alguma coisa que escreveste. Taí. É amor que não se mede.
Parte da crítica literária ainda se refere a ti como porta-voz de uma geração. Mas de que geração, né? Porque tu continuas sendo voz, não só de uma geração e nem só da juventude, mas de todos aqueles que têm um fogo vivo dentro de si, dos que ardem, que choram e riem, e que dançam. Com teu texto potente, orgânico, mutante e ousado, antecipaste muito do que começou a ser feito na literatura recente. Tiveste a coragem de abordar diretamente temas que poucos conseguiam mencionar, disseste e continuas dizendo as palavras e as coisas que precisam ser ditas. O teu estilo singular e refinado -- a arquitetura minuciosa em diferentes gêneros literários e linguagens, que conversa com outras artes, tão belamente imagético e musical -- que encantou a mim e tantos outros dos nossos contemporâneos, segue pulsante e magnetizante. Além de biografar o humano do teu tempo, tua arte se projeta no presente, é atemporal. O reconhecimento da tua universalidade é cada vez maior, todavia. Teus livros continuam sendo reeditados, em volumes individuais e edições especiais, caprichadas, inclusive com material inédito que não tiveste tempo de organizar. Novas traduções vêm sendo publicadas no exterior em francês, inglês, espanhol, alemão, italiano e holandês. O interesse pela tua literatura e por ti só aumenta. Na internet e nas redes sociais #CaioF está sempre bombando, és um popstar.
Não deu tempo pra te contar, mas fora aquele inventário astrológico, que chegaste a acompanhar bem no início da pesquisa, realizei também um outro estudo. Chama-se A obra em branco: biografia de um personagem. Ainda não publiquei. Quem sabe alinhas os astros pra acontecer? O ensaio tem a ver com a biografia do humano de que falavas. Lendo tua produção ficcional na ordem cronológica em que escreveste, começando com Limite branco e seguindo por cada livro até os últimos contos, percebi que havia ali uma “história secreta”. Como fala o Borges e como o pentimento das pinturas, aquela palavra labiríntica sempre na cabeça do jornalista de Dulce Veiga. Não sei se foi a tua intenção. Vi claramente essa narrativa subliminar que dá unidade à obra inteira: a biografia de um personagem que vai evoluindo em uma linha de tempo, na formação de si mesmo, de sua consciência e de sua vocação literária. Através dele desenha-se um panorama do humano de quase quatro décadas e que tem como pano de fundo a história do nosso país. Uma história contada por dentro, pelo avesso, pelas emoções. Caio, que gênio! Nos deste mais este presente: uma história que costura todas as histórias.
No jardim onde achei isso há muita coisa para descobrir, revolver, garimpar, pérolas para colher. Sim, tem um bocado de gente revirando a terra, pesquisando para mestrados e doutorados, coisa e tal. Mas tenho certeza de que há muito mais ainda para encontrar na autorrevelação que proporcionas na experiência da leitura, no prazer do texto. Te ler é se ler. Força que nunca seca, teu jardim continua renascendo e frutificando, faz florescer girassóis e ilumina a vida gritando nos cantos da gente.
Ouço tua voz agora, acaricio leve os pelos escuros e macios no dorso da tua mão branca. O disco arranhado trancou de novo. Nada além...
beijo da tua bruxinha,
Amanda C.
(Esta carta-retrato foi publicada na Revista Parêntese em 2020)
Caio Fernando Abreu: uma literatura de epifanias
(por Amanda Costa. Artigo publicado no jornal Zero Hora - caderno de Cultura de 20/10/2007)
“Acredito em Deus e em muitas formas do mistério. Sou astrólogo, embora não profissional, há 20 anos. Tenho uma curiosidade imensa de saber por que estou vivo, o que significa o céu, o que significa morrer. Portanto, é natural que em meu trabalho estejam presentes todas essas ânsias filosóficas exaltadas. Muitas vezes o que torna digna a vida de um homem é o fato de ele olhar para o céu e dizer “Meu Deus, que coisa imensa...” E perguntar: “Por que eu estou aqui” Toda forma de criação artística é uma maneira de procurar essas respostas.” (Caio Fernando Abreu)
Para entrar no clima de Caio F. escuto Erik Satie, que ele adorava, e observo seu mapa astrológico, feito pelo próprio, em meio a papéis datilografados de uma velha carta. Do mapa deste virginiano, artesão perfeccionista da palavra, que dizia escrever para organizar o inorganizável caos, emerge uma onipresente marca d’água: como os caminhos que faz este elemento, rumo à profundidade, como a emoção indelével que Caio deixa impressa em nós, seus leitores e amigos. Não por acaso suas configurações astrais reiteram o simbolismo aquático, que tem múltiplas conotações ligadas aos estados anímicos e ao mundo dos sentimentos, vividos intensamente na vida e na obra. Caio queria ser um mago, como ele mesmo falou em uma de suas primeiras entrevistas. Queria ser o que foi: mago, xamã, inspirado encantador de serpentes e operador de metamorfoses, sábio transmutador a tanger com seu condão aquele ponto exato em nós, nos despertando e, não raro, nos perturbando, instigando a ir mais fundo, além do ponto.
O interesse pela metafísica, pelo esoterismo, pelas filosofias orientais e pela Astrologia integrava sua experiência pessoal e era vivenciado com respeito e reverência. Caio foi um profundo conhecedor da astrologia e astrólogo altamente intuitivo, compartilhando sua visão através de seus textos. Em Caio, literatura e vida não se descolam, andam juntas, caminho que se faz ao caminhar. O escritor utiliza elementos simbólicos, mitológicos e principalmente astrológicos em seu trabalho, ora como simples referência, ora como vetor na construção ficcional, de forma deliberada. O livro Triângulo das águas se destaca dos demais por apresentar uma estrutura narrativa norteada por princípios astrológicos. Através do simbolismo dos signos de Água -- Câncer, Escorpião, Peixes --, relacionados a cada um dos três contos que constituem a obra, é representado o processo de transformação interior de seus personagens: seres à procura da verdade e de um sentido para suas existências sufocadas pela pressão urbana e pela solidão.
Na mesma carta de 20 junho de 1988, em que me enviou seu mapa, Caio comenta a intenção de escrever outros livros usando os elementos astrológicos: “ando com uma longa história na cabeça. A se chamar 360 Graus. Queria dividi-la em capítulos, assim: 30 graus (o semi-sextil), 60 graus (o sextil) e assim por diante. É uma história de amor, claro. Na verdade ainda não decidi se será 360 ou 180 graus. Estou naquela fase de anotar e ler coisas, à espera de que a Vida (essa senhora tão temperamental) me dê mais alguns – digamos – subsídios. Tenho para mim que ela é quase, talvez, a “grande obra”. Não sei se é um livro só ou parte de um, como o Triângulo das Águas. Era um projeto antigo meu: três histórias para os signos de Água, três para o Fogo e assim por diante — até completar a mandala dos 12. Quem sabe consigo?” Esse é mais um dos tantos projetos bacanas que ficaram espalhados por anotações em guardanapos, cartas e diários, sem tempo de realizar.
A literatura de Caio -- com seu mix bem temperado de amores, sexo, viagens, cidades, drogas, psicanálise, meditação, astrologia, filosofia oriental, candomblé, tarô, cultura pop, poemas, filmes & canções -- mostra sua trajetória pessoal na busca de sentido e de revelação e, ao mesmo tempo, propõe ao leitor um convite para embarcar em sua própria jornada de busca de autoconhecimento, de significado da existência, de crescimento e de transcendência. É impossível ler Caio Fernando Abreu e manter aquela mesma velha ideia formada sobre tudo.
fotos Caio - Dulce Helfer